MIDIATECA EM MOVIMENTO – Escritas do Corpo

Dentro do projeto Midiateca em Movimento, a ação Escritas do Corpo pretende incentivar a partilha de reflexões escritas online sobre o corpo em movimento na dança e nos seus atravessamentos possíveis com outras áreas e linguagens artísticas. Venha compartilhar o seu texto com a Midiateca virtual do Centro Coreográfico!

Neste dia 01/07 compartilhamos dois textos de Fabiana Amaral, que é bacharel em Dança, mestra e doutora em História Comparada pela UFRJ, professora dos cursos de graduação em Dança da UFRJ e desde 2018 é coordenadora de Residências Artísticas e Oficinas do CCo. No ensaio “Temporalidade: sobre uma dança interdisciplinar”, debate-se sobre como encaramos a relação entre a dança e sua história para além de uma visão linear causal, problematizando a produção artística em dança ontem e hoje, ampliando a visão sobre a sociedade na qual nos inserimos. Já no segundo texto, “Reflexões acerca da agência artística em uma sociedade fragmentada”, a autora reflete acerca da atual tentativa de reestruturação de uma sociedade conservadora, onde manifestações artísticas sofrem censura e podem até receber uma resposta violenta de parcelas do público.

Temporalidade: sobre uma dança interdisciplinar

(Texto publicado originalmente nos anais do I Seminário Internacional 
Trans-In-Corporados, 2017. Pdf disponível aqui)

RESUMO: Diante da multiplicação e internacionalização das discussões sobre dança em nosso país, graças, em grande parte, ao aumento de cursos de graduação, cabe debatermos acerca de como encaramos a relação entre a dança e sua história. Para além de uma visão positivista de linearidade causal, descrição de grandes nomes e espetáculos, é tempo de problematizarmos a produção artística em dança ontem e hoje e, com isso, termos uma visão mais ampla da sociedade em que nos inserimos. Este trabalho é um convite a isso.
PALAVRAS-CHAVE: temporalidade, história da dança, interdisciplinaridade.

Brevíssima historiografia da dança

    Em termos culturais, a sociedade ocidental tende a entender o tempo como linear, cujos acontecimentos se desdobram ocasionando irremediáveis consequências, progressivamente. Tal pensamento acaba por ser reforçado através do nosso questionável sistema de ensino brasileiro, no qual a História é entendida por uma grande parte dos alunos como uma série de nomes, datas e eventos a serem decorados, herança da História factual ou Positivista. Não obstante tal tendência já ter sido academicamente discutida e refutada à exaustão desde as décadas de 1920 e 1930, através da École des Annales e, posteriormente, com a Nouvelle Histoire, ainda é reproduzida com certa incômoda constância através de áreas que, curiosamente, deveriam se opor a esse pensamento. É o estranho caso das artes, em particular, da dança.

    Dentro dos estudos historiográficos, o debate sobre a importância da Arte como uma forma de representação de um período e de uma sociedade tornou- se tão amplo que deu lugar a toda uma área de pesquisa independente, a da História da Arte, com graduações, pós-graduações e profissionais dedicados a esse tipo de discussão. Contudo, quando falamos de “História da Arte”, normalmente referimo-nos às artes plásticas; a música, o teatro e a dança raramente se enquadram nessa categoria e pouco ganham espaço de debate nessas pesquisas. Esmiuçando ainda mais o entrelaçamento e as relações possíveis entre História e Artes, não é difícil notar, após uma breve comparação, que o campo da dança é aquele que apresenta o menor número de pesquisas na área, especialmente em língua portuguesa, sendo a maior parte delas traduções de trabalhos publicados em outros países já há muitos anos, logo, bastante defasados. O maior exemplo disso é a referência de bibliografia no Brasil para estudos de História da Dança, que ainda hoje é o trabalho de Paul Bourcier, História da Dança no Ocidente (1987).1 Embora haja trabalhos posteriores, como História da Dança, de Maribel Portinari (1995) e História da Dança: Evolução Cultural, de Eliana Caminada (1999), ambas brasileiras, o livro de Bourcier ainda é a principal fonte de consulta da maioria dos pesquisadores da área ou de quem quer que busque fontes sobre o tema. As razões para isso residem no campo especulativo; podemos considerar que o trabalho de Bourcier é o mais conhecido (ainda que não exatamente o mais completo, até pela pretensão de um recorte temporal tão extenso), ou, talvez, que ainda haja na área da Dança uma percepção colonizada que reproduz os manuais europeus como obras de referência superiores, gerando um não reconhecimento da bibliografia nacional por seus pares. Qualquer que seja o motivo, fato é que, apesar dos 39 anos da primeira edição em francês, o livro de Bourcier ainda é a referência na enorme maioria dos trabalhos a que já tivemos acesso ao longo dos anos, especialmente no Brasil.

A dança como linguagem

    Diante desse panorama restrito, quando discutimos acerca de determinado fenômeno histórico, cabe, a princípio, delimitar de que dança está se tratando, de forma a tornar a análise clara e objetiva: Quem a reproduz? Para quem? Onde foi produzida? Estas questões são essenciais quando nos referimos a um tipo de dança em um determinado período. Ela pode representar um discurso que se modifica de acordo com o contexto em que se insere – formando, assim, um tipo de estrutura discursiva que deixa transparecer a maneira pela qual os indivíduos (ou determinado grupo) que a praticam compreendem e vivenciam sua cultura, podendo ser utilizada, desta forma, como transmissora de saberes e poderes relacionados ao período histórico- cultural de sua criação e transmissão.

    Entretanto, não podemos entender as construções discursivas como estruturas rígidas. Tais construções podem ser manifestas através de signos linguísticos, que representam a linguagem verbal, ou sob outras formas, como esculturas, imagens, danças ou, mais recentemente, gravações (filmes, documentários, etc). Formam, então, uma visão dinâmica do movimento de uma sociedade, resultando em conflitos que são “concretizados” através dos discursos.2

    Há discussões teóricas sobre se a dança pode ser considerada uma linguagem ou não. José Gil (2005), baseado sobretudo em análises da obra de Merce Cunningham, para quem “O sentido da dança é o próprio ato de dançar”,3 defende que não, já que “é impossível recortar, nos movimentos do corpo, unidades discretas comparáveis aos fonemas da língua natural”.4 Por outro lado, se tomarmos a afirmação de Garaudy5 de que “[…] dança não é apenas uma arte, mas um modo de viver”, o arrazoamento de Benveniste6  parece-nos mais adequado: “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’”. Além disso, Lévi-Strauss propôs uma abordagem antropológica cuja característica fundamental é o postulado de que o comportamento humano e as relações sociais constituem uma linguagem.7

    Laurence Louppe8 ressalta que, em termos de dançantes que refletem teoricamente sobre o ato de dançar, o próprio corpo de quem escreve sobre dança é moldado por ela. Através da prática, que aglutina movimentos e processos coreográficos vistos e experienciados, é urdido o próprio lugar de nossa percepção. Monica Dantas (1999) também discute essa questão da dança enquanto linguagem. Para ela, o contexto coreográfico é o responsável por dar significado ao gesto, através da dança como um todo – e esse todo está intimamente ligado à cultura e à sociedade onde se insere, já que o gesto não tem um significado per se. Este é instituído no momento, de acordo com o contexto. Sendo a significação um fator social, a significação da dança é construída na relação entre quem dança e quem assiste.

História da Dança no Brasil

     Fabiana Dultra Britto (2008), ao analisar as principais obras de História da Dança disponíveis no Brasil, nos chama atenção para o fato de que a habitual reprodutibilidade cronológica acaba por sugerir nexos de causalidade insustentáveis pelas evidências. Segundo ela, tais obras popularizam um senso de hereditariedade estética forjando filiações entre mestres e alunos, assentando, assim, a dança brasileira em uma árvore de criadores ramificada em galhos geradores de uma vasta cadeia genealógica. Se considerarmos, continua a autora, que o sistema técnico-estético tomado como profissional no Brasil foi o balé clássico – que aqui chegou por meio de bailarinos estrangeiros radicados no país no começo do século XX –, esses bailarinos seriam então considerados os patriarcas (ou matriarcas) da dança profissional brasileira. Mas basta um olhar mais atento, um maior aprofundamento teórico para constatar que essa insinuação de previsibilidade de trajetórias e efeitos não se sustenta diante do sentido multidirecional e simultâneo do fluxo de continuidade histórica.

A dança é, portanto, um produto histórico da ação humana: cada corpo constrói uma dança própria que, no entanto, é relativa ao conjunto de conhecimentos disponibilizados em cada circunstância histórica e aos padrões associativos que o corpo desenvolve para estabelecer as suas correlações com o mundo – outros corpos, outras danças, outros conhecimentos. E a história da dança é uma narrativa das coerências instauradas através dessas suas correlações.9

    Britto10 ressalta ainda que, em se tratando de uma arte essencialmente corporal, o processo implicado na configuração de uma estética da Dança acontece no corpo, o que acaba por mobilizar ao mesmo tempo intervenções de diversas naturezas e escalas de temporalidade. Para pensarmos, então, em uma História da Dança, precisamos de suporte teórico de complexidade equivalente para que possamos começar a trabalhar com a intrincada rede de relações temáticas envolvida em seu sistema explicativo.

    Não podemos nos esquecer, nesse sentido, da própria formação da sociedade brasileira ao longo do tempo, em suas particularidades. Surge, então, a necessidade de compreender o conceito de tradições inventadas sobre o qual podemos identificar várias características sendo construídas. Hobsbawm e Ranger (1997) fazem longos estudos de caso para discutir esse conceito em determinadas sociedades. Na definição dos autores, tradições inventadas seriam

um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade com relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.11

    Ou seja, tradições inventadas são criadas com o intuito de fortalecer uma ideia, com base em um passado real ou inventado, como no caso, por exemplo, da ideia da democracia racial tão em voga no Brasil nas primeiras décadas do século XX, para nos remetermos aos primórdios da profissionalização da dança brasileira com a criação da primeira escola oficial de dança, a Escola de Bailados do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (1927). A miscigenação brasileira, nas obras da época, é mostrada como fruto de um passado forte, onde três raças com características peculiares e importantes se uniram, o que resultou – ou estaria resultando – no brasileiro ideal. Tradições inventadas são formas que cercam a substância, ou seja, justificativas criadas a partir de uma intenção para cobrir uma ideia.

    Obviamente tal concepção de democracia racial há muito tornou-se defasada entre os pesquisadores, embora ainda seja apregoada e reproduzida estruturalmente por alguns setores da sociedade (o que parece provar a força e a durabilidade das tradições inventadas quando estas partem da elite dominante). Outro exemplo que podemos utilizar como tradição inventada seriam as ideias muito difundidas popularmente de que o balé é a origem das danças que vieram após ele (como a Dança Moderna ou as diversas manifestações de Dança Contemporânea), ou, ainda, que este é necessário para o aprendizado de qualquer outra modalidade. Essa concepção de dependência e continuidade estrita desconhece ou ignora a vida e obra de Isadora Duncan, por exemplo, que renegava o balé como base para sua dança.

Da Interdisciplinaridade

    A interdisciplinaridade entre História e Dança permite-nos observar e amealhar categorias de senso comum e desmontar lógicas parciais de pensamento. Segundo Sahlins,12 a história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas sociedades, conforme esquemas de significação, assim como esquemas culturais são reordenados historicamente, porque eventualmente os significados são reavaliados quando realizados na prática. Desse modo, a cultura é historicamente alterada na ação.

    Sahlins fala ainda sobre uma “estrutura da conjuntura”,13 que se trata da realização prática de categorias culturais em contextos históricos específicos, bem como se expressa nas ações motivadas dos agentes históricos.

[…] um evento não é somente um acontecimento no mundo; é a relação entre um acontecimento e um dado sistema simbólico. E apesar de um evento enquanto acontecimento ter propriedades “objetivas” próprias e razões precedentes de outros mundos (sistemas), não são essas propriedades, enquanto tais, que lhe dão efeito, mas a sua significância, da forma como é projetada a partir de algum esquema cultural. O  evento é a interpretação do acontecimento, e interpretações variam.14

    O significado de um evento altera sua significância, e o significado varia de acordo com a conjuntura que o cerca, tanto em um espectro macro quanto em um micro. Para citarmos um exemplo, uma apresentação do coro e do balé do Theatro Municipal pode ser parte de uma temporada normal ou um ato de protesto por salários atrasados na porta do teatro.15 Podemos afirmar, então, não ser possível separar passado e presente, evento e sistema, teoria e prática, já que esta toma por base conceitos e valores pré-existentes.

A título de considerações finais

    Essas reflexões tornam-se essenciais para que possamos entender a evolução da dança no Brasil como um jogo de adaptação seletiva de informações estéticas com seu contexto.16 Ao estudarmos os desenvolvimentos de cada modalidade, de cada ente dançante, precisamos manter em mente que o tempo não decorre em uma linha reta, de forma causal, onde um evento leva a outro, que conduz a um terceiro e assim numa cadeia de eventos inevitáveis. A temporalidade no estudo da História da Dança surge como um emaranhado de produções imprevisíveis, que se relacionam com o contexto histórico do criador e da sociedade que o cerca. Ao elencarmos um evento para estudo, é necessário mergulhar em sua estrutura, compreender sua ação, dialogar com seu tempo, e, só então inferir interpretações.

Notas

1 A primeira edição brasileira de História da Dança no Ocidente data de 1987, mas o título original, Histoire de la Danse em Occident, é de 1978.
2 BACCEGA, 1995, p. 48.
3 CUNNINGHAM apud GIL, 2005, p. 68.
4 GIL, 2005, p. 72.
5 GARAUDY, 1980, p. 13.
6 BENVENISTE, 2005, p. 286.
7 LÉVI-STRAUSS apud RODRIGUES, 1980, p. 9.
8 LOUPPE, 2012, p. 37.
9 BRITTO, 2008, p. 30.
10 BRITTO, 1998, p. 163-164.
11 HOBSBAWM e RANGER, 1997, p. 9.
12 SAHLINS, 1990, p. 7.
13 Ibid, p. 15.
14 SAHLINS, 1990, p. 191.
15 Para saber mais sobre o protesto realizado em maio de 2017, ver o jornal O Globo de 10 de junho de 2017, disponível em <https://oglobo.globo.com/cultura/musicos-bailarinos-do-municipal-protestam-contra-salarios-atrasados-21315759&gt;. Acesso em 06 de dezembro de 2017.
16 BRITTO, 1998, p. 164

Referências bibliográficas

BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso – História e Literatura. São Paulo: Ática, 1995.
BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem. In: Problemas de Linguística Geral I. 5ª ed. Campinas: Pontes Editores, 2005.
BOURCIER, Paul. História da Dança no Ocidente. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
BRITTO, Fabiana Dultra. Evolução da dança é outra história. In: AMORIM, Paulo Henrique et al. Lições de Jornalismo 1. Rio de Janeiro: Faculdade da Cidade, 1998.
           . Temporalidade em Dança: Parâmetros para uma História Contemporânea. Belo Horizonte: FID – Fórum Internacional de Dança, 2008.
CAMINADA, Eliana. História da Dança: Evolução Cultural. Rio de Janeiro: Sprint, 1999.
DANTAS, Mônica. Movimento: visibilidade do sentido em dança. In: Dança: o enigma do movimento. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999. p. 59-98.
GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
GIL, José. Movimento Total – O Corpo e a Dança. São Paulo: Iluminuras, 2004.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
LOUPPE, Laurence. Poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro, 2012.
PORTINARI, Maribel. História da Dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. RODRIGUES, José Carlos. Tabu do Corpo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

 

 

Reflexões acerca da agência artística em uma sociedade fragmentada

(Texto publicado originalmente nos anais do VI Congresso Nacional de 
Pesquisadores em Dança, 2019. Pdf disponível aqui)

RESUMO: Neste ensaio procuramos refletir acerca da atual tentativa de reestruturação de uma sociedade conservadora, onde manifestações artísticas sofrem censura e podem até receber uma resposta violenta de parcelas do público. Diante de um histórico imperialista e colonial na formação da cultura brasileira, propomos a compreensão do capital cultural artístico visto sob a ótica de um habitus religioso fundamentalista, onde a moral pregada por líderes religiosos determina a forma como a sociedade interpreta as mais diversas manifestações. Para isso, utilizamo-nos das premissas de Edward Said para analisar os aspectos culturais do imperialismo e a resistência a eles na Arte, além de abordar conceitos de Pierre Bourdieu como campo, habitus, capital social e cultural aplicados ao tema.
PALAVRAS-CHAVE: Dança. Política. Resistência. Arte

Introdução

    Há muitas formas de se discutir Arte1. Aspectos filosóficos, históricos, estéticos, políticos, todos ou mais de um deles podem entrar como fatores de argumentação para sustentar análises, mas algo que parece se repetir ao longo da História é a intrínseca relação entre Arte e política.

    A própria interpretação da palavra Arte mudou ao longo do tempo – e segue sua maleabilidade em uma sociedade mutável –, embora sempre presente enquanto manifestação de percepções individuais ou coletivas. Quando a Arte era intrinsecamente relacionada à téckhne helênica2, ela manifestava e trazia à luz os anseios e visões de uma sociedade políade, ou seja, que funcionava em torno da pólis. Assim, as diversas manifestações artísticas não poderiam ser vistas ou interpretadas em separado do conjunto de cidadãos que formava a estrutura social, pois elas também a constituíam e construíam.

    Tomemos, como exemplo, a iconografia dos vasos áticos3; Alain Schnapp ressalta que “possivelmente, nenhuma outra cultura tenha produzido tantas imagens em um período tão curto, não somente pinturas e estátuas monumentais, mas também milhares e milhares de pinturas sobre vasos.” (1988, p. 568). Diante de tal produção, parece-nos impossível discordar do autor quando este afirma que, para além do papel de figuração artística, a imagem era o principal meio de comunicação para aquela sociedade (SCHNAPP, 1988, p. 568).

    Outra questão importante a ser ressaltada é o entendimento sobre as camadas sociais envolvidas na produção e fruição de determinada manifestação artística – e isso é válido não apenas para o período Clássico. Rafael Vergara Cerqueira nos chama atenção para algumas particularidades gregas:

A iconografia, registrada nas pinturas que decoram os vasos gregos, é produzida por artesãos, população de origem humilde e simples, distanciada da sofisticação dos debates filosóficos, do refinamento das récitas poéticas e das observações científicas. Esse caráter social leva a pressupor que a tradição gráfica revele um imaginário popular. Assim, remeter-se da tradição literária à iconográfica significa colocar em relação o imaginário popular e o das elites, a cultura dos excluídos e dos incluídos. Devemos lembrar que, enquanto a alfabetização no período clássico devia atingir, de forma satisfatória, aproximadamente 15 a 20% da população, o entendimento das informações visuais era irrestritamente acessível a amplas camadas, contanto tivessem acesso a divisar os objetos decorados e dispusessem de códigos culturais para interpretá-los (CERQUEIRA, 2000, p. 2).

    Embora Cerqueira refira-se ao caso de uma sociedade e um recorte temporal específicos, certos elementos se repetem em outros contextos. De uma forma geral, a escrita até há bem pouco tempo era restrita a classes sociais mais elevadas; não à toa, durante todo o período medieval os autos de fé, as pinturas religiosas e os teatros de rua tinham o papel de evangelizadores da população mais pobre. Nesse sentido, ressaltamos a importância do fazer artístico como perpetuador de ideias, inquietações ou mensagens a serem passadas de forma plural, e que atinjam diversas camadas sociais – desde que estas possam compreender os códigos utilizados.

    Muitos são os exemplos que podem ser usados para sustentar essa afirmação, tanto pelo viés da presença (através de registros materiais, tais como vasos, pinturas e esculturas) quanto pelo da ausência (através de registros proibitivos de determinada prática). Embora hoje questionável sob a ótica de uma historiografia que se atenta mais a processos do que a grandes figuras ou acontecimentos, o trabalho de Paul Bourcier em História da Dança no Ocidente (1987) nos dá informações preciosas, como uma lista de proibições e interditos religiosos sobre a prática de dança nas igrejas francesas, que vão de 465 a 1562 E.C. (BOURCIER, 1987, p. 46). Mais do que as proibições per se, vale observar a frequência destas – o que comprova a insistência das práticas. Para o Cristianismo em geral, em particular o do Medievo, o controle dos corpos era uma premissa dogmática importante, especialmente quando comparado às práticas tidas então como “permissivas” das religiosidades campesinas. Assim, expressões individuais que pudessem, em algum nível, ser consideradas como artísticas, eram condicionadas à religiosidade impositiva do período.

    Sem dúvida uma análise mais acurada de cada um desses casos demandaria um maior aprofundamento teórico e delimitação de fontes; entretanto, a intenção aqui ao citá-los é apenas exemplificar certos pontos que mais ou menos se repetem ao longo do tempo – inclusive hodiernamente. São eles, em particular: 1- A utilização de práticas artísticas (especialmente as com algum nível de envolvimento visual) como propagadoras de mensagens e ideias, em um caráter comunicativo; 2- As relações – e inevitáveis choques – entre o imaginário popular e o da camada dominante.

O passado atuando sobre o presente

    Para abordar esses choques, recorreremos a Edward Said (1935-2003), importante intelectual palestino do movimento pós-colonialista. Em sua obra mais conhecida, Orientalismo – A Invenção do Oriente pelo Ocidente (1978)4, ele analisa a versão criada pelos ocidentais do que seria o mundo “oriental”, com especial atenção ao mundo árabe. Segundo Said, a visão distorcida do Oriente por parte do Ocidente tinha a intenção de delimitar princípios de “nós” e “outros”, que serviam diretamente aos interesses coloniais, já que invariavelmente representavam os orientais como “bárbaros” e “incivilizados”. Desta forma, os ocidentais se viam impelidos a impor seu modo de vida – “civilizado” – aos povos do “Leste”. Para alguns autores, essa obra é tida como o “manifesto de fundação” das abordagens pós-coloniais (CONRAD e RANDERIA, 2002, p. 22 apud COSTA, 2006, p. 118).

    Já em Cultura e Imperialismo (1993)5, Said discorre mais detidamente sobre os aspectos culturais do imperialismo e, assim, tenta estruturar uma análise geral da relação da cultura local com império. O autor se calca especialmente sobre as narrativas construídas, como ele mesmo afirma na introdução:

Os leitores deste livro logo perceberão que a narrativa é crucial para minha argumentação, sendo minha tese básica a de que as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do mundo; elas também se tornam o método usado pelos povos colonizados para afirmar sua identidade e a existência de uma história própria deles. O principal objeto de disputa no imperialismo é, evidentemente, a terra; mas quando se tratava de quem possuía a terra, quem tinha o direito de nela se estabelecer e trabalhar, quem a explorava, quem a reconquistou e quem agora planeja seu futuro – essas questões foram pensadas, discutidas e até, por um tempo, decididas na narrativa (SAID, 1995, p. 11-12).

    Através dessa linha discursiva, podemos ressaltar o quanto a construção de saberes calcada em discursos colonialistas não suporta adequadamente as multiplicidades e especificidades das realidades a que se propõem analisar. E é particularmente este ponto que queremos salientar; sobre esse aspecto, Caixeta (2015, p. 55) lembra que, de uma forma geral, o movimento pós-colonialista traz à luz a lógica colonial que dita que o Centro, o Norte e o Ocidente são os referenciais únicos a partir dos quais todo o mundo é analisado e compreendido. Assim, Periferia, Sul e Oriente são tomados como espaços deficitários, atrasados e incompletos, sendo os lugares dos “outros” – aqueles que são inferiores.

    Podemos então considerar que a construção de saberes é o que determina, para Said, a dimensão cultural de um grupo (ou sociedade). É a forma como esses saberes são constituídos que vai determinar a prática dos agentes6 – ou seja, não são os agentes que constroem tais saberes, eles se estabelecem desorganizadamente, por meio de instituições que designam quais locais podem ser considerados atrasados ou evoluídos, e não são frutos de uma interferência direta dos agentes, não são gerados espontaneamente por uma sociedade. Esse processo de construção de saberes, na interpretação de Said, ocorre com tensões, mas sem interferência direta de um agente.

    Said procura entender até que ponto romances famosos como “O  coração das trevas”, de Joseph Conrad, “Kim”, de Rudyard Kipling ou “Passagem para a Índia”, de E.M. Foster, auxiliaram, deliberadamente ou não, na disseminação de pressupostos colonialistas. Dessa forma, o autor defende que, ao relacionar cultura e política – o prazer estético de grandes obras como parte essencial do imperialismo – conseguimos aprofundar a compreensão dessas obras e seu impacto social.

    Particularmente no primeiro capítulo, Said discute um ensaio crítico de T.S. Eliot, onde este afirma que “nenhum poeta, nenhum artista ou qualquer arte, tem seu pleno significado sozinho” (ELIOT apud SAID, 1995, p. 34). Nesse ensaio, Eliot defende que a maneira como formulamos o passado determina nossa forma de compreender e nossas concepções do presente. Um ponto fundamental na argumentação de Said é que a cultura tem um papel privilegiado na experiência imperialista moderna. Para o autor, foi através do imperialismo que as bases para o atual mundo globalizado foram lançadas:

As comunicações eletrônicas, o alcance mundial do comércio, da disponibilidade dos recursos, das viagens, das informações sobre os padrões climáticos e mudanças econômicas unificaram até mesmo os locais mais remotos do mundo. Esse conjunto de padrões foi, a meu ver, possibilitado e inaugurado pelos impérios modernos (SAID, 1995, p. 36).

    Nesse sentido, Said relaciona intimamente a Arte nacional com as ideologias imperialistas. Para ele, ignorar o contexto nacional e internacional das representações, observando apenas a coerência interna da obra (no caso que ele menciona, os livros de Charles Dickens), nos leva a perder uma ligação essencial entre a ficção e o mundo histórico dessa ficção. O contexto histórico da obra de arte é essencial, já que nos leva a compreender, através dessa ligação entre obra e História que, graças a essas complexas filiações, ela se torna ainda mais preciosa como obra de arte (SAID, 1995, p.44).

    Trazendo essas questões para a dança, podemos ver o reflexo da íntima relação entre obra e contexto histórico, por exemplo, no trabalho de Eros Volusia. Na década de 1940, a pesquisadora de danças populares ganhou projeção nacional e internacional, graças a seu trabalho de adaptação de danças de grupamentos sociais do interior do Brasil para os palcos da capital do país, no Rio de Janeiro. Durante a primeira metade da década, quando seu trabalho era mais intensamente conhecido e procurado, o país vivia a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, onde procurava-se, através de um controle de narrativas ditado pela imprensa e pela educação (através do ministro de Educação e Saúde Pública Gustavo Capanema), criar uma “identidade nacional”. Entretanto, embora se dissesse que essa identidade estava calcada na miscigenação do povo brasileiro, a orientação por trás dessa narrativa residia em uma projeção arianizada, segundo pensamento eugenista corrente7.

    Outro contexto também a ser observado no período é o da Segunda Guerra Mundial. Com os EUA preocupados em consolidar seu poderio militar – e cultural – no Ocidente, em particular nas Américas, estava ativamente em vigor a “política da boa vizinhança”8. Dessa forma, além de ser convidada para participar de um filme em Hollywood (Rio Rita, de 1942, dirigido por S. Sylvan Simon e estrelado por Abbott & Costello), ela foi também capa da Life Magazine em setembro de 1941. Por que Eros Volusia? Por ela representar muito bem a narrativa construída pelo governo Vargas na época. Sob outra ótica, graças a essa conjuntura em particular, todo o país pôde ter contato com danças típicas de determinados estados, como Caboclinho, Maracatus, entre outras. Contextualizando as relações entre a produção artística e a situação política do Brasil e do mundo, o trabalho de Volusia ganha aspectos mais amplos9.

    O exemplo de Volusia reitera, ainda, os pontos que sublinhamos no início deste texto: Sua obra coreográfica tinha um caráter comunicativo, na medida em que reproduzia e reafirmava as mensagens e ideologias defendidas pela classe dominante do período, além de servir de ponte entre a camada popular – os criadores das danças ditas folclóricas, no interior do Brasil – e a camada intelectualizada e rica da capital. Curiosamente (ou nem tanto), Volusia era uma firme defensora do balé como base de todas as danças, chegando até mesmo a afirmar que julgava indispensável a base clássica para o desenvolvimento da dança enquanto fazer artístico, “como um pintor deve aprender desenho” (VOLUSIA apud PEREIRA, 2004, p.25, 45). Assim, dialogando com Said, as danças dos “colonizados” só eram aceitas e legitimadas nos grandes palcos a partir de um corpo trabalhado pela arte do “colonizador”10.

    A partir do terceiro capítulo de Cultura e Imperialismo, Said passa a abordar os temas de resistência e oposição. Remetendo a seu livro anterior, Orientalismo, o autor lembra que “o resultado líquido do intercâmbio cultural entre parceiros cientes da desigualdade é que o povo sofre” (SAID, 1995, p. 305). Situação diferente, como menciona o autor, do que aconteceu com os textos gregos quando ressignificados pela Renascença. Os clássicos foram lidos e apropriados por humanistas italianos, franceses e ingleses, que imaginaram uma “república ideal”, sem “a incômoda interposição de gregos de carne e osso” (ibdem) e, por essa razão – entre outras –, esse período histórico raramente é visto com desconfiança ou de forma depreciativa.

    Algo muito diferente se dá com a História recente da África e das Américas, em especial a Latina. Graças a movimentos pós-colonialistas e decolonialistas11, tem havido uma recuperação de saberes originários que por séculos foram usurpados dessas populações através da colonização imperialista e predatória. Entretanto, cabe ressaltar que a interpretação dada hoje a esses saberes inevitavelmente perpassa pelas construções herdadas do período colonial, já que

[…] a história de todas as culturas é a história dos empréstimos culturais. As culturas não são impermeáveis; assim como a ciência ocidental fez empréstimos dos árabes, estes haviam tomado emprestado da Índia e da Grécia. A cultura nunca é uma questão de propriedade, de emprestar e tomar emprestado com credores absolutos, mas antes de apropriações, experiências comuns e interdependências de todo tipo entre culturas diferentes. Trata-se de uma norma universal. Quem já determinou quanto o domínio de outros contribuiu para a enorme riqueza dos Estados inglês e francês? (SAID, 1995, p. 336).

    Assim, quando se pensa em agência, falamos também em resistência. Não  há possibilidade de se criar um poder, uma hegemonia completa, sem que, em oposição a esta, se crie uma contra-hegemonia. Entretanto, como temos notado até aqui, não há uma organização plena no campo cultural; a estrutura de uma cultura imperialista é constituída através dos saberes. Isso quer dizer que não há agência de um grupo específico na estruturação da cultura; os saberes são constituídos historicamente de forma desorganizada, embora resultem em uma cultura mais ou menos organizada.

Arte como campo de resistência em um habitus fundamentalista

    E, quando falamos em resistência na realidade brasileira nos com poderes políticos retrógrados, conservadores e com onde minorias são vistas como uma parcela da população descartável – um ponto de vista que se afina com o que existia por trás do imperialismo colonialista12. Dessa forma, propomos aqui, além de discutirmos a agência artística e cultural perante a estrutura de poder constituída, herança de nosso passado como colônia, pensarmos a Arte – como manifestação de uma cultura e de uma sociedade – enquanto campo, dentro da perspectiva de Bourdieu. Cremos, com isso, que possamos entendê-la como um sistema estruturado com regras que comandam seu acesso, determinando a posição de seus integrantes, que disputam o capital cultural produzido.

    Entretanto, para discutirmos a Arte enquanto campo, é necessário abordar outros dois conceitos de Bourdieu: O de capital cultural e o de habitus. A princípio, capital cultural pode ser entendido como um bem simbólico – que, por sua vez, integra um sistema de bens que representam a categoria de “distinções simbólicas”, onde seu valor se deve a sua posição em uma estrutura social (BOURDIEU, 2001, p. 16) –, representando uma instância de poder (ou, talvez, uma condição de classe). Ele é definido por elementos como títulos acadêmicos e o prestígio a eles atrelado, além da capacidade publicamente reconhecida de discernir os “códigos de deciframento estético” por possuir domínio dos fundamentos determinados como legítimos para interpretar a obra de arte. Assim, grosso modo, capital cultural seria o reconhecimento público de um conhecimento formal e/ou um prestígio popular que permite ao agente determinar, perante as massas, o que pode ser considerado ou não como Arte. Já habitus, para Bourdieu (2001, p. 201), consiste em um “sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas”, ou seja, estruturas construídas primeiro pela educação familiar e, em seguida, transformadas pela escola, estabelecendo, assim, a base das experiências posteriores do indivíduo.

    Em um momento de recrudescimento de um discurso conservador, xenófobo e reacionário não só no Brasil como no mundo, propomos a compreensão do capital cultural artístico visto sob a ótica de um habitus religioso fundamentalista, onde a moral pregada por líderes religiosos determina a forma como a sociedade interpreta as mais diversas manifestações – modificando, inclusive, os códigos de deciframento estéticos outrora compreendidos. Considerando-se que atos, costumes e condicionamentos permeiam os indivíduos, levando-os a assumir determinadas posturas e atitudes muitas vezes conduzidos por elementos construídos por sistemas de representação, uma disputa de poder pode conduzir à violência física e/ou verbal. Tendo em mente a visão de agente enquanto força de resistência, o saber, quando aplicado ao poder, inclina-se a criar dicotomias. O poder político não exaure a realidade, assim como toda hegemonia tem uma oposição. A instabilidade é uma constante.

A teoria na prática

    Podemos visualizar melhor esses princípios quando pensamos em três manifestações artísticas recentes e que ganharam as mídias graças à censura que sofreram – e às reações que despertaram.

    O primeiro caso que queremos mencionar, à luz do que discutimos até aqui, é o da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”. Conduzidos por um grupo organizado de aliados das elites políticas oligárquicas do país, que desde 2016 tem se infiltrado nos meandros do poder utilizando-se de uma massiva propaganda online, onde distorce fatos, omite informações e inventa entraves, sempre com discursos inflamados, uma barulhenta manifestação vocal e online derrubou a exposição do Queermuseu, após já um mês em exibição no Santander Cultural, em Porto Alegre/RS. A mostra, com curadoria de Gaudêncio Fidelis, era composta por 270 trabalhos de 85 artistas, com temática LGBT+, questões de gênero e diversidade sexual. Dentre os autores em exposição estavam Cândido  Portinari  e  Lygia  Clark, entre outros. As manifestações  de  completa ignorância  sobre  o  conteúdo  das  obras  expostas  alegavam  exibições  de cunho pedófilo e zoófilo, além de desrespeito a símbolos religiosos13. Ora, a significação é um fato social (DANTAS, 1999, p. 78), e quando esvaziadas do diálogo e reflexão a que convidam, tais obras são vistas sob as lentes limitadas da superficialidade e do olhar seletivo daqueles que tomam a parte pelo todo. Ao invés de debater e questionar obras isoladas que os incomodavam por serem menos ou mais explícitas, tal grupo preferiu forçar uma censura baseada em morais religiosas que tentam impor mesmo àqueles que não compartilham de suas crenças. Após ser vetada pelo poder público municipal do Rio de Janeiro14, a exposição arrecadou mais de um milhão de reais através de financiamento coletivo e pôde, assim, abrir suas portas novamente ao público na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no próprio Rio, no dia 18 de agosto de 2018. Não sem enfrentar manifestações dos mesmos grupos político-religiosos organizados intitulados Movimento Brasil Livre (MBL) e Templários da Pátria; dessa vez, entretanto, seus protestos foram inócuos e a exposição contou com longas filas durante todo o dia15.

    Situação ainda mais deplorável foi vista após a performance “La Bête”, na estreia do 35º Panorama de Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o segundo caso que trazemos à discussão. “Bichos”, obra de Lygia Clark que inspirou Wagner Schwartz, é composta de uma série de esculturas de figuras geométricas com dobradiças, de forma que o público possa interagir com a obra, ultrapassando os limites de uma Arte feita para ser apenas observada. Schwartz interage com uma réplica de plástico de uma das esculturas de Clark, dispondo-se nu e vulnerável, em um convite ao público para que faça de seu corpo também uma obra dinâmica de interação artista-espectador. A performance foi filmada por alguém da plateia e publicada na internet, despertando o furor do mesmo grupo anteriormente citado, que conclamou sua turba a se levantar contra o museu e o performer por uma criança – acompanhada da mãe – ter interagido com o artista durante a apresentação16. O Museu deixou claro em nota que havia sinalização sobre o teor sensível do trabalho, incluindo cena de nudez. Entretanto, dessa vez as manifestações foram além das ofensas virtuais e resultaram inclusive em agressões físicas a funcionários do museu17.

    O terceiro e mais recente caso de uma tentativa de imposição de morais conservadoras sobre obras artísticas veio diretamente do governo do estado do Rio de Janeiro sobre a performance de encerramento da exposição “Literatura Exposta”18, na Casa França Brasil, em janeiro de 2019. Com curadoria de Julio Ludemir (literatura) e Álvaro Figueiredo (artes plásticas), a exposição contava com 10 obras de escritores de periferias do Rio de Janeiro e 10 artistas visuais interpretando essas obras. Dentre elas, “A Voz do Ralo é a Voz de Deus”, do Coletivo És uma Maluca, já havia sofrido impedimentos no início da exposição. Composta por seis mil baratas de plástico em volta da tampa de um bueiro, a obra contava ainda com um áudio de trechos de discursos do presidente Jair Bolsonaro, mas este foi vetado pelo diretor da Casa França-Brasil, Jesus Chediak, e pelo secretário estadual de Cultura, Leandro Monteiro, alegando preocupação com a imagem do presidente então recém eleito19. Para driblar a censura que sofreu, o Coletivo adotou um artifício comum aos jornais nos tempos na ditadura no Brasil: substituiu o discurso do presidente por uma receita de bolo. A instalação é inspirada no conto “Baratária”, de Rodrigo Santos, que narra a história de uma mulher torturada com baratas introduzidas em sua vagina no período da ditadura militar. Por fim, no encerramento da exposição, haveria uma performance de duas artistas que interagiriam com a obra. Mais uma vez, o trabalho foi vetado. A exposição foi encerrada um dia antes do previsto, mas as artistas optaram por fazer a performance na rua, em frente ao espaço cultural20.

 Considerações finais

    Buscamos, através dessas três manifestações artísticas recentes, demonstrar o que vimos pontuando ao longo deste texto. Como mencionado no início, a obra de arte – seja qual for sua forma, mas em especial se houver apelo visual – carrega em si um forte poder comunicativo, e com isso marcadamente se torna um veículo de propagação de mensagens e ideologias. Esse poder de comunicação é extremamente variável, a depender da mensagem a ser passada, o público que vai recebê-la, o período histórico e o contexto político-social de sua execução.

    O Brasil se constitui de uma sociedade complexa, heterogênea, mas com fortes raízes religiosas (particularmente cristãs) e conservadoras, herança de nosso passado colonial. Essas particularidades, quando somadas a um histórico de frágil e instável democracia e problemas sociais severos (violência, fome, educação deficitária) acaba transportando para o campo das Artes embates críticos vivenciados em outras instâncias – como a censura ao corpo, à livre manifestação de ideias, muitas vezes uma grande resistência e desconfiança ao que se considera “novo” e, portanto, “corrompido”. Os códigos para se aceitar determinada estética se tornam limitados a partir do momento que o capital cultural é dominado por uma parcela que toma para si o papel de impor como interpretar as manifestações artísticas através de um eurocentrismo cultural marcado por um posicionamento branco, heterossexual, cisgênero, masculino, cristão.

    Dentro do contexto em que vivemos atualmente, mostra-se de suma importância a posição da Arte enquanto campo em sua luta pelo poder simbólico. A resistência reside para além da produção e criação, mas também na classificação de signos e legitimação de representações. Através das diversas manifestações artísticas, minorias podem reafirmar seu lugar e sua voz na sociedade, trazendo à luz situações que, para o status quo, deveriam ficar nas sombras.

Notas

1 Utilizaremos Arte, com A maiúsculo, para ressaltar a área de conhecimento ampla.
2 “Produzir, em grego, é tíkto. A raiz tec desse verbo é comum à palavra tékhne. Tékhne não significa, para os gregos, nem arte, nem artesanato, mas um deixar-aparecer algo como isso ou aquilo, dessa ou daquela maneira, no âmbito do que já está em vigor. Os gregos pensam a tékhne, o produzir, a partir do deixar-aparecer” (HEIDEGGER, 2001, p. 138-139).
3 Há um senso comum, quando se trata da Antiguidade Grega, que é tomar Atenas pela Grécia, ou Hélade. Na grande maioria dos casos, quando os pesquisadores – em particular de outras áreas que não a História, ou, ainda, da própria História quando não helenistas – se referem à Grécia Antiga, referem-se exclusivamente a Atenas, principal cidade da região da Ática e uma das maiores pólis do período clássico (VI – IV a.E.C.). Cabe ressaltar, porém, que como em todos os períodos históricos, grupamentos sociais demonstram inúmeras diferenças em sua organização política e social, e isso deve ser levado em consideração, é claro, com as sociedades antigas. Portanto é importante ressaltar que, aqui, nos referimos especificamente a Atenas por haver uma maior quantidade de estudos disponíveis e não ser o foco principal deste artigo. Porém, para uma análise mais detalhada desse período, é altamente relevante e recomendável levar em consideração outras pólis importantes, como Esparta.
4 Aqui utilizaremos a tradução brasileira de 2013, da Companhia das Letras.
5 Utilizaremos a tradução brasileira de 1995, da Companhia das Letras.
6 Entendemos aqui agentes como um grupamento de indivíduos empenhados em defesa de determinados interesses em comum, de quaisquer tipos, agindo em coletivo na sociedade em busca de seus objetivos. Esses indivíduos podem atuar nas diversas instâncias da organização social ou à margem destas.
7 Um exemplo claro disso pode ser visto quando da polêmica entre Capanema e o escultor modernista Celso Antônio, contratado para esculpir um monumento a ser erguido em frente à sede do Ministério da Educação e Saúde Pública, no Rio de Janeiro. Capanema deu as orientações: a figura deveria ter 11m, e seria uma figura nua, remetendo a O Pensador de Rodin, representando o homem brasileiro. Celso Antônio apresentou um projeto com uma figura barriguda e de origem racial indeterminada, remetendo a feições de um caboclo. Isso decepcionou profundamente o ministro, que esperava uma obra idealisticamente arianizada. O projeto, no fim das contas, foi arquivado (AMARAL, 2018, p. 93).
8 A Política de Boa Vizinhança (ou Good Neighbor Policy) foi uma iniciativa política estadunidense, sob a tutela de Franklin D. Roosevelt, apresentada durante a Conferência Panamericana de Montevideo, em dezembro de 1933. Com ela, os EUA buscavam consolidar sua influência sobre a América Latina através de relações diplomáticas e culturais. Para saber mais a respeito, ver GALDIOLI, 2008 e MORAES, 2008.
9 Essas questões foram discutidas mais profundamente em AMARAL, 2018.
10 Importante ressaltar que os termos “colonizado” e “colonizador”, neste caso, são usados no sentido de estruturas de poder. Volusia não trazia membros das comunidades pobres e interioranas do Nordeste, onde ia pesquisar suas danças, para os palcos do Rio de Janeiro; ela ensinava essas danças para suas alunas do Serviço Nacional do Teatro (a maior parte de classe média e alta) que, antes, precisavam ter seus corpos domados através do balé clássico. É claro que Volusia era uma mulher de sua época e todas essas análises só podem ser feitas através de uma visão em retrospectiva do período.
11 Dentre os pesquisadores da área, há uma tendência maior a usar o termo “decolonial” em lugar de “descolonial”, embora essa escolha não seja unânime. Há uma razão conceitual por trás disso; segundo Catherine Walsh (2009, p. 14-15), a supressão da letra “s” marca a distinção entre o processo de independência das ex-colônias (descolonialismo), e o “decolonialismo”, que pretende provocar um posicionamento contínuo de transgressão e insurreição, uma postura contínua de luta em busca de construções narrativas alternativas.
12 Cabe ressaltar, porém, que o conceito de minorias sociais não era compreendido à época do colonialismo, já que, para ser considerado assim enquanto conceito sociológico, o grupamento precisa tomar consciência de si próprio como grupo diferente dos outros e, na maioria dos casos, socialmente inferiorizado (e visto como inferior por outros). Entretanto, os efeitos das relações de “superioridade” e “inferioridade” impostas no período colonial muitas vezes ainda se fazem sentir hoje, como no caso do racismo.
13 Acerca da polêmica sobre a mostra, ver o jornal El País de 13 de setembro de 2017, disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/11/politica/1505164425_555164.html>. Sobre as acusações de pedofilia e o posicionamento do Ministério Público sobre o caso, ver publicação do G1 de 12 de setembro de 2017, disponível em <https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/nao-ha-pedofilia-diz-promotor-apos-visitar-exposicao-de-diversidade-sexual-cancelada-em-porto-alegre.ghtml>.
14 Informação disponível em <https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/mar-decide-nao-trazer- queermuseu-ao-rio-21902600>.
15 Informações disponíveis em <https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/protesto-diversidade-muita-fila-que-rolou-na-reabertura-da-queermuseu-22992259>.
16 Para mais sobre o assunto, ver matéria do G1 de 29 de setembro de 2017, disponível em
<https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/interacao-de-crianca-com-artista-nu-em-museu-de-sp-gera- polemica.ghtml>.
17 Ver Estadão de 30 de setembro de 2017, disponível em
<http://cultura.estadao.com.br/noticias/artes,protesto-contra-performance-no-mam-termina-em- agressao,70002022348>.
18 <http://literaturaexposta.com.br/>.
19 Ver O Globo de 04 de dezembro de 2018, disponível em <https://oglobo.globo.com/cultura/casa- franca-brasil-proibe-audio-de-bolsonaro-em-instalacao-da-exposicao-literatura-exposta-23280534>.
20 Ver O Globo de 13 de janeiro de 2019, disponível em
<https://oglobo.globo.com/cultura/performance-vetada-em-exposicao-na-casa-franca-brasil-sera-feita- na-rua-23369313>.

Referências

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